A volta da “Ferrovia do Diabo”
Não são apenas más notícias que chegam da Amazônia, que registrou, apenas entre 1° e 24 de agosto último, quase 4 mil focos de incêndio – quatro vezes mais do que os 1.110 focos verificados no mesmo período do ano passado. Os dados são da Agência Espacial Europeia. Uma grande parte destes incêndios teve origem criminosa.
A boa notícia é que começa a ganhar corpo, no estado de Rondônia, um projeto de criação de uma organização civil de interesse público para o restabelecimento do antigo trecho ferroviário de 366 km entre a capital, Porto Velho, e a cidade de Guajará-Mirim, na fronteira com a Bolívia. Ou seja, do traçado integral da lendária Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que entrou para o imaginário brasileiro pelas dificuldades que foram oferecidas pela selva durante a sua construção.
De fato, depois de duas tentativas fracassadas no final do século 19 e da morte de centenas de operários, vitimados por acidentes ou pelas doenças tropicais, espalhou-se o mito de que, mesmo com todo o dinheiro do mundo e metade da população mundial trabalhando nas obras, seria impossível concluí-las.
Só que não foi. A ferrovia – que, não por acaso, já ganhara o apelido de “Ferrovia do Diabo” – acabou sendo implantada entre 1907 e 1912 pelo empreiteiro norte-americano Percival Farquhar, o mesmo – o que a grande maioria dos brasileiros desconhece – que esteve à testa da construção do Canal do Panamá. Na verdade, as obras definitivas da ferrovia foram praticamente contemporâneas à construção do canal, tendo sido iniciadas bem pouco tempo depois. Ambas foram as primeiras da engenharia civil estadunidense fora dos EUA.
De qualquer modo, nas obras da Madeira-Mamoré muito foi aproveitado da experiência enfrentada pouco antes na construção do canal. Com base no verdadeiro morticínio registrado nas obras no Panamá – as doenças tropicais atingiram parte substancial dos mais de 20 mil trabalhadores de 50 diferentes nacionalidades acantonados lá, matando milhares deles – Farquhar contratou o sanitarista brasileiro Oswaldo Cruz, que visitou o canteiro de obras e saneou a região. Problema resolvido.
O empreiteiro americano e o sanitarista brasileiro enfrentaram e venceram a selva amazônica – vista então com um grande medo do que ela poderia guardar contra quem invadisse o seu espaço então ainda quase indevassado (e que, diga-se de passagem, provocou o fracasso do projeto de exploração de borracha do magnata americano Henry Ford, a Fordlândia, no Pará, duas décadas depois).
Um medo que hoje não existe mais, de modo algum. Tanto que a Amazônia hoje tem de ser protegida dos grileiros, garimpeiros, madeireiros e produtores rurais predadores, que não hesitam em incendiar a floresta ou derrubar as árvores, sempre clandestinamente. Cerca da metade das florestas do mundo já desapareceu, e a Amazônia irá por este mesmo caminho, se nada de efetivo em preservação for feito.
CONDIÇÃO ESTRATÉGICA – Uma desvantagem das lendas negativas, como a que circunda até hoje a Ferrovia Madeira-Mamoré, é que o “lado iluminado” do objeto da lenda geralmente submerge no “lado mal assombrado”. A imagem da ferrovia foi tão lacerada pelas sombras do fracasso e da tragédia que muitos brasileiros – senão a maioria – acham que ela sequer foi implantada, e muito menos que um dia funcionou. Ledo engano.
Funcionou, e bem, até 1966, depois de 54 anos de atividades, quando, antiga, mas não obsoleta, teve a sua desativação determinada pelo então presidente marechal Castelo Branco. A ferrovia acabaria sendo substituída em sua função operacional pelas rodovias BR-425 e BR-364, que ligam Porto Velho a Guajará-Mirim. Mas a operação ainda continuou de forma intermitente: as locomotivas apitaram pela última vez apenas em julho de 1972, determinando assim o seu real fechamento.
Os serviços prestados pela ferrovia nestes 54 anos de atividade foram para lá de estratégicos – tanto para o Brasil como para a Bolívia, país onde, aliás, o anteprojeto da ferrovia nasceu, ainda em 1846, pelas mãos do engenheiro José Augustin Palácios, que defendia o acesso da Bolívia ao Oceano Atlântico via ferrovia e os rios da Amazônia, como opção à saída para o Pacífico, via a Cordilheira dos Andes.
Esse projeto básico não foi modificado, mas só aperfeiçoado, depois dos fracassos iniciais da implantação, por ocasião da assinatura do Tratado de Petrópolis (1903), no contexto do ciclo da borracha e da Questão do Acre com a Bolívia – que conferiu ao Brasil a posse deste estado. Foi criada então a firma Madeira-Mamoré Railway, que acabaria depois por levar o projeto para frente com ajuda americana.
O objetivo era principalmente o de vencer o trecho encachoeirado do Rio Madeira, para facilitar o escoamento da borracha boliviana e brasileira (além de outras mercadorias) até um ponto onde pudesse ser embarcada para exportação. No caso, o ponto seria Porto Velho, de onde as mercadorias seguiriam por via fluvial, pelo mesmo Rio Madeira e, depois, pelo Rio Amazonas, até o Oceano Atlântico. Até então, esses produtos eram transportados em canoas indígenas precárias, sendo obrigatória a transposição das cachoeiras no percurso.
A ferrovia garantiu para Brasil e Bolívia o estabelecimento de fronteiras ”firmes” e permitiu a colonização de vastas extensões do território amazônico, a partir da cidade de Porto Velho, fundada em 1907. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45), ela supriu plenamente o transporte da borracha da Amazônia utilizada no esforço de guerra aliado. Em 1957, quando ainda registrava um intenso tráfego de passageiros e cargas, a ferrovia, que foi a 15.a construída no país, passou a integrar a recém-criada Rede Ferroviária Federal (RFFSA), formada por 18 empresas do país. A sua decadência começaria aí – acompanhando, aliás, a decadência de todo o sistema ferroviário brasileiro, que foi perdendo o apoio governamental à medida que novas rodovias eram construídas para sustentar a chegada da indústria automobilística.
REVITALIZAÇÃO – A ideia do governo e da sociedade civil de Rondônia de revitalizar a Madeira-Mamoré surgiu, na verdade, já faz algum tempo, mas só agora, diante da fragilidade técnica e jurídica da iniciativa original, os rondonienses resolveram ir à luta e tirar de uma vez o projeto do papel, desta vez com foco centrado no turismo ferroviário.
A entidade – batizada de “Amigos do Trem da Estrada de Ferro Madeira Mamoré” – já consultou faculdades do Sul de Minas Gerais que promovem cursos de qualificação em projetos econômicos sustentáveis para restauro de ferrovias, e realizou reuniões em Porto Velho, Guajará-Mirim, Guayaramerín (Bolívia) e em Brasília sobre o encaminhamento da proposta.
O objetivo do grupo é também atrair para o projeto artistas, escritores, historiadores, arquitetos, músicos e ex- empregados da ferrovia, além de capital privado para revitalizar a via e colocar novos trens para andar sobre os trilhos até a fronteira boliviana. O custo total do projeto ainda não foi estimado, nem estabelecido o cronograma dos trabalhos, mas devem sair ainda neste ano.
Diga-se que haverá muito que fazer. A Madeira-Mamoré hoje é uma ferrovia sucateada. Desde que foi fechada, em 1972, o abandono foi total, a ponto de, em 1979, o acervo começar a ser vendido como sucata para usinas siderúrgicas. Voltaria a operar em 1981 em um trecho de apenas 7 km dos 366 km do percurso original, mas apenas para fins turísticos, sendo, no entanto, novamente paralisada por completo em 2000. Em 2005, uma composição faria uma única viagem, transportando convidados para participar de uma Missa de Finados em memória das centenas de operários, muitos de outras nacionalidades além da brasileira, que morreram durante a sua construção. Esta foi também a última viagem feita na Madeira-Mamoré.
Mas, neste mesmo ano, a histórica via férrea foi finalmente tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em 2006, o Ministério da Cultura homologou o tombamento da ferrovia como Patrimônio Cultural Brasileiro. Mas só em 2011 o Iphan autorizaria o início das obras de restauração da grande e imponente oficina da ferrovia, que possui 5.700 m2 e 13 m de altura, ainda longe de ser concluídas, embora o prazo final fosse 2014.
Sempre faltou dinheiro para este trabalho, embora ele devesse ser em boa parte financiado pelas compensações do governo federal aos impactos ambientais provocados pela construção das usinas hidroelétricas de São Antônio e Jirau no Rio Madeira. A verba também deveria servir para pôr em operação um trem para serviços de turismo no trecho entre a estações de Porto Velho e de Santo Antônio, de aproximadamente 8 quilômetros. É possível que este projeto seja, agora, incorporado ao projeto maior dos Amigos da Madeira-Mamoré. (Alberto Mawakdiye)