Alteração polêmica das normas de segurança e saúde do trabalho
Amadeu Roberto Garrido de Paula (*)
Trata-se de um assunto cerrado entre especialistas, mas a preocupação com a saúde, a vida do trabalhador e a adequação dos locais de trabalho aos padrões de limpeza e de qualidade dos produtos consistiu na motivação principal da humanidade ao criar, em 1919, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), órgão importantíssimo da Organização das Nações Unidas.
No Brasil, a ação preventiva está regulada pelas Normas Regulamentadoras (NRs), que emanavam do extinto Ministério do Trabalho.
Declarou o presidente da República Jair Bolsonaro que pretende revogar 90% dessas normas, pois elas impediriam nosso crescimento; como se fossem burocracia desnecessária a entravar as empresas.
Concomitantemente, a Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, um “puxadinho” criado para preencher o espaço do antigo Ministério do Trabalho e Previdência Social, que tem como titular o sr. Rogério Marinho, declara que todas as NRs estão em estudo e pretende um debate tripartite (governo, empregados e empregadores), a fim de criar novas normas. Não quer calar a pergunta: se a intenção final do presidente é a de extinguir, simplesmente, 90% das normas, outras estariam sendo criadas em seu lugar, ou simplesmente está armado um amplo teatro? Note-se que essas normas refletem regras internacionais e convenções celebradas pelo Brasil, de modo que não podem ser substituídas por disposições normativas que contrariem seus princípios.
Simplesmente deixar o Brasil sem normas preventivas e protetivas do trabalho é um delírio. O ônus superará o bônus, como se verá a seguir. E não se imagine que seremos mais competitivos no plano internacional, lançando num mercado cada vez mais seletivo mercadorias mais baratas, porém advindas da precariedade do trabalho. Os mercados modernos não convivem com a precarização produtiva, um modo solerte de protecionismo.
Considerando-se, por exemplos já dados (reforma trabalhista, de que foi o relator), destruir princípios seculares, substituindo-os por experiências duvidosas, é a inclinação supostamente pragmática e criativa do sr. Rogério Marinho, ex-integrante do baixo clero parlamentar e sem nenhuma formação notável no campo do Direito e da Economia. Face à responsabilidade que o tema nos atribui, consideramos importante traçar um apertado histórico nacional e forâneo da questão, com as considerações seguintes.
Essas medidas preocupam o Ministério Público do Trabalho, como não poderia deixar de ser, porque:
Estuda-se a demolição da NR1 (segurança e medicina do trabalho), NR2 (inspeção prévia), NR3 (embargo e interdição quando uma obra põe em risco o trabalho – e outras pessoas), NR9 (prevenção de riscos ambientais), NR15 (insalubridade), NR17 (ergonomia) NR24 (condições sanitárias) e, para ser eficaz a implosão, a NR 28 (fiscalização e imposição de penalidades).
É desnecessário detalhar as consequências. Atente-se a apenas uma: condições sanitárias numa indústria de alimentos.
Desenvolveram-se essas normas no início do século passado quando se tornaram insuportáveis os cortes na carne e no sangue dos trabalhadores de todo o mundo.
O Brasil, como sempre, não acompanhou, salvo tardiamente. Agora, em nosso meio, propõe-se a ruína. Não à toa se fala em retrocesso ao núcleo sórdido das revoluções industriais.
Números passados já indicavam 653.090 acidentes anuais de trabalho, 20.786 mesopatias (doenças vinculadas ao trabalho) e 580.592 afastamentos temporários.
Segundo organismos de previdências, 6.500.000 a 7.000.000 de acidentes naqueles últimos dez anos (41% da população do Chile e o dobro da do Uruguai). Milhares de óbitos.
As causas são inúmeras. Avultam as desumanas jornadas excessivas de trabalho, limitação que foi ao limbo com a última “reforma” trabalhista. Atento a isso, já pregava o saudoso professor Octávio Bueno Magano, inobstante sua franca tendência filosófica ao alívio dos encargos patronais, portanto insuspeito: “Se nos ativéssemos aos fundamentos em que se alicerça a limitação da jornada de trabalho, haveríamos de repelir a possibilidade de horas extraordinárias.”
Consagramos agora o milagroso sistema 12×36, que desrespeita o ritmo cicardiano ou nictameral caracterizado pela ativação psicossomática durante o dia – 12 horas – e outra de desativação do sono durante a noite.
A disciplina é vastíssima e de vertical interesse a toda a humanidade, mas no Brasil não temos nenhuma cadeira média ou universitária dedicada a esse assunto basilar.
É muito simples dizer – e amiúde se o faz – que a culpa pelo acidente é do trabalhador, tal como sempre a queda dos aviões é atribuída às tripulações.
O planeta foi alertado com a criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1919. Esse tema foi o principal motivo de sua criação e de sua colaboração civilizatória que perdura até nós. E sempre sua fundamental preocupação.
São 21 convenções internacionais, subscritas pelo Brasil. Sabe-se que pactos internacionais se internalizam em nosso direito no plano constitucional. E o que contraria a Constituição é coisa nenhuma.
Até 1970 não tínhamos NRs. Trabalho animalesco, sangrento, nos meios urbano e rural.
O “custo Brasil” era muito maior, com os afastamentos, as internações, as hospitalizações prolongadas, as milagrosas Santas Casas de Misericórdia e a congérie de desgraças humanas e econômicas. Fiquemos nestas, pois as primeiras não empolgam, sequer arranham a sensibilidade do atual governo. Humanista é comunista, que deve ser eliminado.
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(*) O autor é advogado. Há mais de 40 anos, dedica-se à defesa de causas relacionadas à Justiça do Trabalho, Direito Empresarial, Direito Constitucional e Sindical.