Ninguém sabe ao certo quantas são as obras paradas no Brasil
Um decreto assinado no último mês de outubro pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo ministro da Economia, Paulo Guedes – que colocava as Unidades Básicas de Saúde, as chamadas UBSs, no escopo do programa de concessões e privatizações do governo -, provocou tanta polêmica que foi revogado no mesmo dia pelo presidente.
Confuso e muito genérico, o decreto, que levava o número 10.530, simplesmente não explicava como a iniciativa privada poderia participar desta sensível área da saúde pública, que conta com 44 mil estabelecimentos pelo Brasil afora, quase sempre sob administração municipal, e fortemente subsidiada pelos governos estaduais e, principalmente, pelo federal. Trata-se de um setor que sobrevive quase todo ele à base de subsídios públicos.
Ou seja: como se daria a privatização, neste caso? Os serviços prestados pelas UBSs passariam a ser cobrados – demolindo o princípio da universalidade e gratuidade do Sistema Único de Saúde (SUS)? Os subsídios seriam canalizados diretamente para as empresas que herdassem a atividade? Mas, então, para que privatizar? Sem respostas convincentes, o governo achou melhor deixar para lá. Pelo menos por enquanto.
OBRAS PARADAS – Mas um ponto do decreto de Bolsonaro-Guedes agradou a muitos que o leram com mais atenção – o que previa a conclusão, pelas empresas que participassem do processo, das obras de mais de 4 mil UBSs e 168 Unidades de Pronto Atendimento (UPA) ainda inacabadas. As empresas também se responsabilizariam pela aquisição de equipamentos e contratação de pessoal.
Mesmo tendo sido engavetado junto com o decreto, este item foi visto como, pelo menos, uma tentativa de estabelecer uma estratégia para começar a eliminar a absurda quantidade de obras paralisadas no Brasil. Elas nem de longe se limitam à área da saúde, na qual, além de postos de atendimento, também há hospitais com obras paradas.
Há desde escolas a rodovias e ferrovias, de redes de água e esgoto a armazéns portuários, a conjuntos habitacionais. Um pouco de tudo, e um pouco por toda parte. O Brasil é um verdadeiro mostruário de obras paradas: tantas, que ninguém consegue sequer dizer quantas elas somariam, de fato.
NÚMEROS NO MILHAR – O que está fora de questão é que elas ultrapassam facilmente a casa do milhar. Em uma estimativa considerada conservadora, elas já estariam na casa dos 5 mil, na esfera dos governos federal e estaduais. Segundo levantamento feito em 2016 pelo Tribunal de Contas da União (TCU), apenas sob a responsabilidade de diversos órgãos da administração federal haveria 2.214 obras interrompidas no país, com valor estimado de R$ 16 bilhões.
“É um desperdício. Na área de rodovias, por exemplo, houve nos últimos dez anosuma expansão de ridículos mil quilômetros na malha rodoviária federal. Quando a frota de veículos, principalmente no segmento de caminhões, cresceu exponencialmente”.
(Carlos Saboia Monte, engenheiro e consultor)
Na avaliação do próprio governo federal, o número de obras interrompidas seria muito maior do que 5 mil, alcançando a marca das 14 mil, segundo o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas. De acordo com o ministro, para retomar essas 14 mil obras, o governo precisaria de algo como R$ 89 bilhões. Muito dinheiro até para um país com finanças equilibradas, o que hoje não é o caso do Brasil. Mas Freitas garante que alguma coisa dá para ser feita, se a iniciativa privada for atraída por bons projetos de concessão.
“A maioria dessas obras não está no âmbito do Ministério da Infraestrutura. Mas as que estão dentro do nosso alcance, nós vamos encaminhar, estamos trabalhando para isto”.
(Tarcísio de Freitas, ministro da Infraestrutura)
ACÚMULO – Diga-se que as obras hoje paralisadas não foram iniciadas no mesmo dia e, de repente, assim do nada, alguém decidiu interrompê-las. Canteiros lacrados ou mesmo francamente abandonados sempre estiveram presentes no país. Em 1995, por exemplo, uma comissão do Senado verificou a existência de mais de 2 mil obras inconclusas, com dispêndios acumulados, à época, de mais de R$ 15 bilhões. Em 2007, o TCU, em trabalho realizado sobre 400 obras não concluídas, calculou que o valor delas chegava a R$ 3,34 bilhões.
Obras são iniciadas por todas as administrações, federais, estaduais e municipais, e paralisadas seja pelos próprios gestores que as tiraram do papel, seja pelas administrações seguintes.
As razões são as mais variadas: desde falhas na elaboração dos projetos ou dos estudos de viabilidade, falta de licença ambiental e escassez de recursos financeiros, até problemas na fiscalização e concorrências e contratos mal formulados, passando pela mudança de planos das novas administrações eleitas em substituição às anteriores que deram início às obras – a famosa e tão lesiva “descontinuidade administrativa”.
RETOMADA – A quantidade de obras paradas é tão grande que, naturalmente, seria impossível retomá-las todas de uma vez só. A verdade é que algumas, de fato, sequer mereceriam ter sido tiradas do papel, de tão inúteis e mal ajambradas que são. O desafio de retomá-las, portanto, terá de passar por escolhas de prioridades rigorosas, dentro de parâmetros os mais racionais possíveis.
A Federação Nacional dos Engenheiros (FNE), que representa cerca de 500 mil profissionais no país, quer responder a este desafio. A entidade lançou em outubro a publicação “Recuperação pós-pandemia”, na qual defende a retomada de obras públicas paralisadas como a melhor forma de movimentar rapidamente a economia, e gerando empregos ao mesmo tempo.
A publicação é parte do projeto “Cresce Brasil + Engenharia + Desenvolvimento”, mantido desde 2006 pela FNE e sindicatos filiados para contribuir com um projeto nacional de desenvolvimento.
As propostas, constantemente atualizadas e aprimoradas, abordam áreas consideradas cruciais ao desenvolvimento nacional, como transportes, energia, saneamento, recursos hídricos e meio ambiente, comunicações, ciência e tecnologia e agricultura.
A elaboração do documento “Recuperação pós-pandemia” contou com a participação de consultores especialistas nas áreas vistas pela FNE como centrais para um programa de retomada consistente da economia do país, quais sejam, habitação, saneamento e logística.
Para o presidente da FNE, Murilo Pinheiro, a tarefa de verificar quais obras devem ser retomadas e reunir as condições para tanto é enorme e complexa, mas também inadiável, devido aos enormes déficits que se acumularam no Brasil nas diversas áreas da infraestrutura.
“É um trabalho que terá de envolver bom planejamento, licitações competentes, destinação adequada dos recursos e rigorosa fiscalização. Mas, para que isso seja possível será preciso, antes, que governo e parlamento abandonem a visão fiscalista hoje predominante, que está engessando todas as tentativas de avanço nacional e a elaboração de pensamentos mais estratégicos”.
(Murilo Pinheiro, presidente da Federação Nacional dos Engenheiros – FNE)
Mas, de onde sairá o dinheiro? Para o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, tanto da iniciativa privada, via projetos de concessão, como de uma melhor aplicação dos recursos orçamentários. Ele critica acerbamente, dentre outras distorções, os vários fundos mantidos em parte pelo governo, e cujos recursos seriam desajeitadamente engessados.
Freitas cita que só o Ministério da Infraestrutura tem cerca de R$ 36 bilhões parados em fundos que não podem ser usados para absolutamente nada, como o Fundo Nacional da Aviação Civil. Para cada concessão realizada no setor, a outorga auferida no leilão é depositada nesse fundo.
Pela concessão do Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP), por exemplo, o governo é obrigado todo ano a colocar R$ 1,2 bilhão no fundo da aviação civil. Em contrapartida, a Infraestrutura só pode usar para a aviação regional de R$ 170 milhões a R$ 200 milhões.
“Ou seja, somos obrigados a jogar nesse fundo, todo ano, de R$ 5 bilhões a R$ 6 bilhões, ou até mais, e só podemos usar de R$ 170 milhões a R$ 200 milhões, o que não dá para nada. É muita irracionalidade”.
(Tarcísio de Freitas, ministro da Infraestrutura)
(Texto: Alberto Mawakdiye)