Dispensa da assinatura de testemunhas nos contratos eletrônicos
Luis Henrique Favret (*)
O fortalecimento dos meios digitais é indissociável na vida moderna. Os meios tecnológicos fazem parte do cotidiano e as rotinas empresariais têm acomodado transações via internet rotineiramente, e preocupações como regras de compliance e arquivamento de dados e assinaturas no ambiente online são uma constante ao se pensar na Lei Geral de Proteção de dados.
Se é cada vez mais visível a necessidade de um gerenciamento de documentos jurídicos com o apoio de ferramentas digitais de gestão, a preocupação com aspectos jurídicos dos negócios pela via da internet também é uma preocupação constante. Afinal, contratos digitais foram concebidos para facilidade, de modo a não necessitar de demais encaminhamentos e as assinaturas eletrônicas são utilizadas amplamente em outros meios.
Mas ainda há questionamentos jurídicos sobre a validade e exequibilidade de contratos digitais, especialmente quanto a questão da assinatura de testemunhas. De maneira geral, a razão da participação de testemunhas em um determinado contrato é atestar que as assinaturas dos contratantes são autênticas.
Em poucas linhas, o terceiro, que testemunha a assinatura de um contrato, fornece evidência imparcial de que o contrato foi realmente celebrado e assinado, e as partes concordaram com os termos do contrato. Isso evita fraudes, já que caso um dos contratantes alegue não ter assinado determinado documento, a testemunha que presenciou a tratativa poderá afirmar o contrário, ou mesmo poderá confirmar que alguém assinou um contrato em nome de outra pessoa.
São formalidades seculares surgidas no direito das obrigações do Direito Romano. Os romanos eram extremamente formalistas o que na verdade era um reflexo da vida em sociedade cercada de rituais. O mais importante contrato no Direito Romano era a stipulatio, formalidade na qual certas fórmulas (palavras) trocadas entre as partes constituíam prova do constituição de uma obrigação. Nos últimos anos da República, a stipulatio passou por uma transformação muito significativa, porque as fórmulas verbais foram substituídas por documentos escritos (em latim, scriptura) como meio de prova uma obrigação. Este documento servia como meio probatório e não constitutivo da obrigação, assim, cabia prova em contrário de sua existência, por meio de testemunhas, por exemplo.
Desta forma, o nosso direito sempre entendeu a testemunha contratual como prova de realização e validade do negócio jurídico, mas o contrato em si não depende das assinaturas das testemunhas para ter validade; o vínculo contratual se firma com a assinatura das partes, mas as testemunhas lhe dão substância.
Por isso o contrato assinado sem testemunhas tem a mesma validade legal de um contrato que ostenta a assinatura das testemunhas, mas como a lei empresta maior certeza aos contratos que contêm a assinatura das testemunhas, o contrato nesses termos é considerado título executivo extrajudicial, apto a manejar ação de execução.
Isso não quer dizer que o contrato sem a assinatura de testemunhas torna-se imprestável. Nada obsta que a parte que detenha um contrato, sem assinatura de testemunhas, ingresse em juízo para determinado pleito, mas como o contrato nessa situação não pode ser considerado título executivo extrajudicial, a via processual que a parte deverá se valer é mais longa e tormentosa, com possibilidade de maior amplitude à cognição do juiz.
Mas a questão se torna mais dificultosa nos contratos eletrônicos, porque a celebração dos negócios jurídicos se dá por meio digital, sem a presença física das partes contratantes e sem a possibilidade de que testemunhas se façam presentes para certificar a realização do negócio. Se determinadas formalidades ainda são necessárias no ambiente jurídico-contratual, por outro lado a utilização de novas tecnologias impõe um novo olhar do nosso ordenamento jurídico e do Poder Judiciário.
Os contratos eletrônicos, na verdade, só se diferenciam dos contratos físicos em relação ao seu formato, mas existem requisitos de segurança e autenticidade próprios, de forma que a nova realidade impõe que se reconheça a executividade de muitos contratos digitais. A tecnologia oferece meios seguros de atestar a validade da manifestação de vontade dos contratantes, e como tal, a assinatura digital é uma realidade segura e já legislada, bastando ver que a Medida Provisória 2.200/01, que Instituiu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, garante a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica produzidos com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil, os quais presumem-se verdadeiros em relação aos signatários.
A Lei nº 12.682/12 dispôs sobre a elaboração e o arquivamento de documentos em meios eletromagnéticos, requerendo que o processo de digitalização seja realizado com o emprego de certificado digital. Mais recentemente, a Lei nº 13.874/19, popularizada como Lei da Liberdade Econômica, dispensou inclusive a exigência de guarda do documento físico original, assegurando que o documento digital e a sua reprodução, em qualquer meio, realizada de acordo com o disposto nessa lei, terão o mesmo valor probatório do documento original.
Se para as testemunhas em um contrato, incumbia certificar a realização de determinado negócio, os meios digitais certamente substituem essa necessidade de certificação com absoluta segurança, não havendo razão para que em muitos contratos digitais ainda se ateste a exigência das testemunhas para a formação de título executivo extrajudicial, a despeito das disposições do Código de Processo Civil que exige, no taxativo rol do art. 784, a assinatura de duas testemunhas aos contratos particulares assinados pelo devedor.
O Superior Tribunal de Justiça já entendeu, quanto do julgamento do REsp n.º 1.495.920/DF, que há de se considerar como título executivo extrajudicial o contrato assinado de forma eletrônica apenas pelas partes, retirando, portanto, a necessidade de assinatura de duas testemunhas. Nada mais evidente: a assinatura eletrônica agrega aos contratos autenticidade e integridade, sendo desnecessária a assinatura das testemunhas.
O entendimento do STJ confere não somente uma maior segurança aos contratos feitos pela via digital, mas traz às autoridades certificadoras um grau de confiança superior ao dos cartórios oficiais. Isso porque um contrato físico, mesmo com reconhecimento cartorial, só pode se tornar título executivo com a assinatura das duas testemunhas. Mas a decisão do STJ não se trata de recurso repetitivo e, portanto, não vincula o posicionamento dos tribunais em outros casos envolvendo o mesmo tema, de modo que podem surgir decisões conflitantes.
Mas, a realidade é que não se pode dispensar as testemunhas em todo contrato ou mesmo permitir a celebração do contrato pela via digital. Existem modalidades de contrato onde a dispensa das testemunhas e, da assinatura digital, não são adequadas, porque demandam formalidades específicas, como é o caso das escrituras públicas. Não é sem outro motivo que A 3ª Turma do STJ, no julgamento do REsp 182334, recentemente entendeu que o contrato de empréstimo mediante consignação em folha de pagamento que não contenha a assinatura de duas testemunhas não é título executivo extrajudicial. Na ocasião, o STJ entendeu que o empréstimo consignado possui características peculiares que o diferenciam dos demais títulos de crédito fixos constituídos a partir de valores e encargos preestabelecidos, visto que há na relação a presença de um empregador que é responsável pelo desconto dos recursos na folha de pagamento e pelo repasse à instituição credora.
Parece que a relativização muito ampla da exigência das assinaturas das testemunhas e, da assinatura física, pode trazer problemas, especialmente em contratos mais complexos, que exigem formalidades especiais ou que albergam situações excepcionais. Se para os contratos mais usuais, como é o caso da prestação de serviços de um curso pela internet, por exemplo, há de se dispensar a assinatura física e a presença de testemunhas em razão da confiabilidade do sistema e da segurança que os meios digitais conferem aos contratantes, não há de se permitir que negócios complexos e que exigem fórmulas especiais ou a presença física das partes de modo a atestar as condições para o advento da obrigação, sejam dispensados da secular necessidade das testemunhas.
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(*) O autor é advogado, sócio da Oliveira-Favret Sociedade de Advogados.