América Latina e a África ganhariam muito com a expansão da bionergia da cana

Lançado na sede da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), na capital paulista, em dezembro do ano passado, o livro “Sugarcane bioenergy for sustainable development” – ou, em português, “A bioenergia de cana para o desenvolvimento sustentável” – mostra que é grande o potencial do uso da cana-de-açúcar como uma ferramenta estratégica para o desenvolvimento sustentável de vários países da América Latina e da África.
O livro é fruto de um trabalho de cinco anos desenvolvido nos dois continentes pelo Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético da Universidade Estadual de Campinas (Nipe-Unicamp), com apoio do Programa Fapesp de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) e de diversas outras instituições do Brasil e do exterior. Ele traz, basicamente, os resultados do chamado Projeto Lacaf, realizado no âmbito do Bioen, reunidos em 33 artigos de autoria de 60 pesquisadores brasileiros e de outras nacionalidades.
Além de demonstrar que a bioenergia pode ser produzida de
forma eficiente e proporcionar benefícios econômicos e sociais para os países usuários, um dos principais objetivos do trabalho foi também o de contrapor-se à ideia muito difundida de que o uso da bioenergia é prerrogativa de apenas uns poucos países, como o Brasil e os Estados Unidos, que de fato respondem juntos por mais de 80% da produção atual de biocombustíveis líquidos. O que, nos dias de hoje, estaria longe da verdade.
“Diversos países também já estão usando a bioenergia, mas em pequena escala. Isso dá a impressão de que a bioenergia seria uma espécie de ‘jabuticaba’, que só funciona em alguns lugares. Trata-se de um engano”, diz Luiz Augusto Horta Nogueira, pesquisador associado do Nipe-Unicamp e membro da coordenação do Programa Bioen. “Tanto que, somando-se a produção mundial, hoje a bioenergia é a modalidade de energia renovável mais consumida no mundo, com participação equivalente à da energia hídrica, eólica, solar e de outras fontes renováveis juntas”.
E o potencial de uso, de acordo com o pesquisador, seria muito maior, se os investimentos em bionergia crescessem em volume de recursos e expansão geográfica. Existe, inclusive, um amplo estudo feito recentemente pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apontando que cerca de 440 milhões de hectares de terra estariam disponíveis globalmente para serem usados para a produção de bioenergia até 2050.
Mais de 80% dessas terras estariam localizadas justamente na África e na América do Sul e Central, sendo que cerca de 50% delas em apenas sete países: Angola, República Democrática do Congo e Sudão, na África, e Argentina, Bolívia, Colômbia e, em maior parte, no Brasil, na América Latina. Por isso, as duas regiões foram escolhidas pelo Programa Bioen como objeto do estudo, pois são as que apresentam as condições mais favoráveis para a produção e seriam estratégicas para a expansão da bioenergia no mundo.
O Brasil é, de longe, o país com maior disponibilidade de terra para plantio de cana para produção de bioenergia, sendo considerado, no entanto, um caso atípico de produção de bioenergia a partir da cana com alta produtividade. Mas, segundo o estudo, além do Brasil, outros países da América Latina também tiveram sucesso no cultivo da cana, como a Colômbia, a Argentina e a Guatemala. A Colômbia, inclusive, a exemplo do Brasil, produz cana e etanol com alta produtividade.
Por sua vez, a Argentina iniciou recentemente um programa de
geração de bioenergia a partir da cana e do milho e tem atingido níveis de mistura de etanol na gasolina próximos aos do Brasil. Já a Guatemala, embora seja um grande produtor de açúcar da cana e apesar de produzir e exportar etanol para os Estados Unidos, ainda importa toda a gasolina de que necessita.
Na África, as experiências mais bem sucedidas ocorreram na África do Sul – que hoje é o maior produtor de açúcar da cana do continente africano-, além das Ilhas Maurício, Malawi e, mais recentemente, Moçambique.
COZINHA A CARVÃO – Em comum nas duas regiões, uma parcela expressiva da população ainda não tem acesso à eletricidade e energia limpa para cocção de alimentos. Na parte sul da África, por exemplo, estima-se que 59 milhões de pessoas utilizem carvão para cozinhar – o que gera sérios problemas de saúde e ambientais, como o desmatamento.
A proposta seria a de estimular o uso da bioenergia para cocção nesta região, pois ali a demanda por etanol neste segmento seria muito superior à voltada para o abastecimento da frota veicular das cidades, onde até 90% da população usa energia de baixa qualidade e em condições insalubres para cozinhar. Uma família típica da região precisaria de 360 litros de etanol por ano para abastecer um fogão a etanol.
Na verdade, a produção de etanol para cocção já foi tentada em alguns países daquela área da África, como em Moçambique, mas não foi adiante porque faltou combustível. De acordo com o estudo, se houver disponibilidade de etanol para essa finalidade, com certeza o mercado vai absorver facilmente a produção.
Os pesquisadores estimam que a produção de 4,1 bilhões de litros de etanol de cana e de 2,7 terawatt-hora (TWh) de eletricidade por ano em Moçambique geraria 3,3 milhões de empregos e aumentaria em 28% o Produto Interno Bruto (PIB) do país africano. Para produzir essa quantidade de combustível e de eletricidade, seria necessário cultivar cana em 600 mil hectares, o que corresponde a menos de 3% da terra disponível para plantação de cana no país africano, eles afirmam. Ou seja, há terra adequada e disponível suficiente no país para expandir a produção de cana-de-açúcar, sem prejudicar outros usos, como a produção de alimentos e de ração animal.
Ainda segundo a pesquisa, a inclusão de pequenos produtores deve fazer parte substantiva do modelo de produção dos países que adotarem a bioenergia da cana. À exceção do Brasil, da Austrália e dos Estados Unidos, no resto do mundo a cana é cultivada por pequenos produtores, em propriedades agrícolas menores do que 10 hectares. A Índia, que é o segundo maior produtor de cana no mundo, hoje, tem, por exemplo, 5 milhões de hectares de cana plantada e 50 milhões de produtores.
Prestes a completar 10 anos em 2019, o Programa Bioen já resultou em mais de mil publicações. O impacto dos trabalhos publicados fez com que, em 2013, pesquisadores ligados ao programa recebessem um convite para coordenar um estudo da sustentabilidade da bioenergia global para o Comitê Científico para Problemas do Ambiente (Scope, na sigla em inglês), agência intergovernamental associada à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
A realização desses estudos também tem ajudado a projetar os resultados da pesquisa sobre bioenergia em São Paulo nos fóruns mundiais sobre o tema. De fato, há menos de uma década o espaço dos pesquisadores brasileiros no debate mundial sobre esse assunto era muito menor do que atualmente. (Alberto Mawakdiye)
Fonte: Ipesi