Fabricantes aeronáuticos se voltam agora para os carros voadores
A corrida pela viabilização dos carros voadores não está envolvendo apenas as montadoras de automóveis e as empresas de alta tecnologia. Não chega a ser nada surpreendente que as grandes fabricantes de aviões do planeta – como a estadunidense Boeing, a europeia Airbus e a brasileira Embraer – também estejam desenvolvendo os seus próprios projetos nesta área, que, afinal de contas, tem tudo a ver com elas, de certo ponto de vista.
Assim, a Boeing começou a testar um táxi aéreo autônomo cujo sistema elétrico, de propulsão a hélice, permite que ele voe como um helicóptero por 80 km sem precisar parar para a realimentação das baterias. Os testes levam em conta decolagem, pouso, conceito em manobras aéreas e piloto automático. Ainda não há previsão para que ele entre em operação nas grandes cidades.
Já a Airbus vem desenvolvendo, em parceria com a montadora alemã Audi, um carro voador com oito motores elétricos, autonomia de 50 km e potência de 217 cv. Por seu turno, a Embraer firmou um a acordo com a Uber, arquiconhecida empresa americana de tecnologia, para desenvolver um modelo com decolagem e aterrisagem vertical, de modo a servir como uma flexível alternativa de transporte nos grandes e congestionados centros urbanos.
PRATO FRIO – O interessante na entrada de fabricantes aeronáuticos neste que tende a se tornar, no correr desta década, um dos nichos mais disputados no setor de mobilidade, é que há, nela, um sutil “gosto de vingança” contra as montadoras.
De fato, se já houve tentativas de produtoras de aviões também fabricarem automóveis, elas foram tão tímidas e frustrantes que mal ficaram registradas na história. Pelo contrário, as montadoras de automóveis, quando se dispuseram a tal, produziram aviões aos milhares, e como uma das coisas mais simples do mundo.
Obviamente, uma “invasão” deste tipo só é possível se duas tecnologias compartilham traços em comum. É o que acontece agora com os carros voadores e aconteceu até algumas décadas atrás, em grande escala, com os aviões.
Se o desenvolvimento dos motores elétricos e dos drones abriu espaço para as fabricantes de aviões se meterem na área de carros voadores, a utilização dos motores a explosão, tanto pelos automóveis como pelos aviões, também permitiu que as montadoras passassem a fabricar aviões quando quisessem, fosse por razões comerciais ou por necessidade – a pedido de governos, por exemplo. Num caso ou no outro, o maior investimento não está, ou esteve, na propulsão, mas sim no design.
FORD T – Diga-se que a produção de aeronaves pelas montadoras (que, aliás, ainda continua, meio timidamente, no segmento de pequenos jatos regionais), vem dos primórdios tanto de uma como de outra modalidade de transporte.
De fato, Henry Ford, o lendário americano que fundou a Ford Motors, devia ser enfileirado também entre os pioneiros da aviação. Afinal, ele financiou o desenvolvimento, em 1909, do Ford Van Auken, um monoplano que foi simplesmente um dos primeiros aviões do mundo. O Van Auken usava, é claro, uma versão mais potente do motor do Ford T.
Henry Ford não parou por aí. A marca continuaria a sua aventura no mundo da aviação pelas décadas seguintes. O destaque do seu setor aeronáutico foi o Ford TriMotor, de 1926. O avião podia levar 10 passageiros, atingia 240 km/h e tinha autonomia para percorrer 1 mil km.
Apelidado de “Ganso de Lata” por conta de sua fuselagem com alumínio corrugado, o Ford TriMotor inaugurou a era da aviação comercial norte-americana e é, provavelmente, o avião mais conhecido da marca até hoje. A aeronave teve cerca de 200 unidades vendidas.
AVIAÇÃO MILITAR – Mas foi a aviação militar a que respondeu pela maior participação – quase massiva, na verdade – das indústrias automotivas no mercado aeronáutico. Uma das mais insistentes neste esforço foi o grupo italiano Fiat, que chegou a montar uma empresa especializada em aviões, a Fiat Aviazone, que existiu de 1908 até 1969.
A Fiat Aviazone começou a deslanchar após a Primeira Guerra Mundial (1914-18), quando comprou várias fabricantes de pequeno porte, depois de ter produzido diversos modelos de caças e bombardeiros para o exército italiano, sendo que alguns deles se tornaram paradigmáticos.
Repetiu o feito na Segunda Guerra (1939-45), quando também forneceu para as forças italianas vários tipos de aeronaves de combate. Mas o avião mais importante da Fiat Aviazone foi o G.91, de 1958, que usava propulsão a jato. O caça-bombardeiro foi adquirido por forças aéreas de diversos países, como Alemanha e Portugal.
GUERRA – Foi, não coincidentemente, também durante a Segunda Guerra Mundial que outras montadoras, sediadas nos principais países beligerantes, aventuraram-se com mais vigor no segmento aeronáutico. Muitas delas, na verdade, já forneciam peças e motores para fabricantes de aviões, como a britânica Rolls-Royce e a alemã BMW. Mas a produção em massa de aeronaves militares era uma novidade para quase todas elas.
Na verdade, na maioria dos casos, as montadoras apenas complementaram a produção das fabricantes aeronáuticas a pedido dos respectivos governos, dentro do esforço industrial de guerra, não tendo participado do projeto ou do desenvolvimento.
Pelo menos dois modelos americanos que as montadoras compartilharam a produção entraram para a história. Um deles foi o bombardeiro Libarator B-24, um projeto da Consolidated, que foi o avião de maior produção durante a Segunda Guerra Mundial, graças principalmente ao trabalho da Ford.
Estima-se que mais de 18 mil aeronaves foram fabricadas, sendo que a montadora construiu uma média de 650 B-24 por mês no pico da produção, em 1945. O ritmo de trabalho era tão acelerado que os pilotos e outros tripulantes dormiam em beliches dentro da famosa fábrica de Willow Run, em Michigan, esperando os aviões saírem da linha de montagem.
No final da guerra, no total, a Ford havia construído 86.865 aeronaves completas, 87.851 motores e 4.291 planadores militares, participando ativamente também da produção de modelos de aviões empregados pela marinha americana.
A General Motors, por sua vez, respondeu por parte da produção do avião de caça Mustang P-51, da North American, tido como o melhor da categoria na segunda metade da guerra. O “Cadillac dos Céus” oferecia uma poderosa mistura de velocidade, alcance e poder de fogo, tendo, segundo estimativas, abatido 4.950 aeronaves inimigas. O Mustang virou, com o tempo, cobiçada peça de colecionador.
Parecida com a Fiat, no sentido de que também possuía uma divisão aeronáutica, a Mitsubishi não só construiu, mas também projetou e desenvolveu o mais famoso avião japonês da Segunda Guerra, o caça Zero AGM3. O Zero entrou em serviço em 1937 e foi o principal caça da marinha japonesa durante o conflito.
Era um avião respeitadíssimo pelos inimigos, e ganhou fama devido à sua autonomia, velocidade e manobrabilidade. Dominou os combates aéreos no front asiático praticamente até 1943. Alguns especialistas apontam que o projeto do Zero marcou, inclusive, o início da tecnologia de alta precisão nipônica.
JATINHOS E HELICÓPTEROS – A grande época da incursão das montadoras na indústria aeronáutica, evidentemente, já passou, mas várias delas – especialmente no Japão, onde os grupos industriais gostam de produzir um pouco de tudo – produzem até hoje pequenos aviões e até helicópteros (como a francesa Citroën e a alemã Mercedes-Benz).
É o caso da própria Mitsubishi, que desde o fim da Segunda Guerra desenvolveu cerca de 20 aviões, e das também japonesas Subaru e Honda. E ainda da sueca Saab, corporação que, aliás, começou no setor aéreo, tendo só depois derivado para o automotivo.
As alemãs Mercedes e BMW, por seu turno, operam no segmento de preparação do interior de aeronaves. Já a Rolls-Royce tornou-se uma das mais importantes fabricantes de turbinas de aeronaves do mundo.
Mas, ao menos no nicho de carros voadores, as montadoras podem levar o troco. Sempre em dificuldades financeiras, as fabricantes de aeronaves já estão vendo neste misto de drone e minicarro a oportunidade para uma grande (e literal) volta por cima. Com boas chances de sucesso. (texto: Alberto Mawakdiye/foto: Airbus/divulgação)