Vendas de SUVs é facilitada pela diluição do conceito de veículo off-road
Poucas notícias provocaram tanto frisson no mundo automotivo como a confirmação pela Ferrari, no final do ano passado, de que a lendária montadora italiana de esportivos de luxo pretende mesmo participar do mercado de SUVs – sigla em inglês de “Sport Utility Vehicle”, ou, em português, Veículo Utilitário Esportivo, aquele mix de caminhonete e carro de passeio hoje tão presente nas ruas.
A empresa até forneceu alguns detalhes. O seu primeiro utilitário (de luxo, naturalmente) vai se chamar Purosangue, chegará ao mercado até o final de 2022 e será o primeiro veículo da marca com quatro portas. O modelo estará disponível em duas versões, com motor a combustão ou híbrido. O motor será central-dianteiro e a transmissão ficará na traseira, permitindo, assim, tração nas quatro rodas.
“Vai ser um carro 100% Ferrari, o que significa que estará apto a entregar a mesma emoção ao dirigir”.
(Enrico Galliera, chefe de marketing da Ferrari)
A surpresa ficou por conta de que, com o novo veículo sendo 100% Ferrari ou não, era até então simplesmente inimaginável a companhia ter um representante no mercado de SUVs. Afinal, a própria montadora passou anos alardeando que jamais entraria nesta categoria, para não perder a autenticidade da marca, cujos carros conseguem ser ao mesmo tempo clássicos e esportivos. Uma característica que, certamente, não é o maior diferencial dos SUVs.
Na verdade, a Ferrari, envergonhadamente, não admite que o Purosangue seja um SUV, mesmo que os atributos dele deixem claríssimo que o carro se encaixa nessa categoria. “Ferrari e SUV não cabem na mesma frase”, repetiam sem cessar os executivos da empresa durante a apresentação, sem conseguir convencer ninguém.
De qualquer forma, a Ferrari reconheceu que o lançamento do Purosangue será um “ponto de mudança” na marca e uma forma de responder aos novos gostos presentes no mercado – onde hoje o SUV seja talvez a modalidade mais apreciada.
A empresa – reconheça-se – resistiu o quanto pôde. Tanto que a Ferrari é quase o “último dos moicanos” entre as marcas de luxo a jogar a toalha e também lançar um SUV para representá-la nesse cobiçado mercado.
O Purosangue virá para concorrer com empresas de grife que já são ferrenhas adversárias da Ferrari no mercado premium. Todas já têm SUVs rodando nas ruas: a Lamborghini (com o seu SUV Urus), a Rolls-Royce (com o Cullinan) e a Bentley (com o Bentayga). A próxima “moicana” será a Aston Martin, aquela dos carros de James Bond, que também já anunciou preparar o lançamento de um SUV para muito breve.
A ascensão dos SUVs – que já abocanham mais de 20% das vendas totais de automóveis em boa parte do planeta, inclusive no Brasil – é meio difícil de explicar.
Não são carros exatamente baratos e econômicos, e não é qualquer garagem que pode abrigá-los, pois uma boa parte dos modelos é de porte médio para cima.
Estão longe também de serem carros apropriados para a atual realidade urbana, com sua falta de áreas de estacionamentos e engarrafamentos permanentes. Um cenário para o qual os carros compactos e econômicos parecem muito mais adequados (e a própria indústria pensava assim há poucos anos, quando não parava de lançar modelos desse tipo).
Mas algumas razões são óbvias. Os SUVs têm enorme apelo para quem possui espírito aventureiro, mas gosta de cultivá-lo também no asfalto, no dia a dia. Ou seja, é um modelo com aptidões de fora de estrada, mas com conforto de veículo de passeio.
Além de apresentar substancial espaço interno, a posição de dirigir também é mais alta, o que passa uma sensação de maior segurança para quem dirige e para os passageiros – fator bastante relevante em um país de alta criminalidade como o Brasil.
“Na verdade, o brasileiro não compra um SUV pela capacidade off-road, nem mesmo pelo status. O que importa é a flexibilidade de espaço e, principalmente, a posição de dirigir alta, que passa sensação de segurança ao volante. No Brasil, parece, SUV é conceito de carro urbano alto”.
(Paulo Roberto Garbossa, diretor da ADK Consulting).
Outra razão óbvia do sucesso dos SUVs é a profusão de marcas e modelos à disposição do consumidor, que beira o inacreditável. Praticamente já não há montadora que não tenha pelo menos um SUV no seu portfólio. No Brasil, em 2017, os SUVs passaram os “carros de entrada” em volume de vendas e tornaram-se a segunda maior fatia do mercado, com 22,34% de participação, só perdendo para os hatches pequenos. E esta fatia continua aumentando, para gáudio das companhias.
A JAC Motors, que estava mal das pernas no Brasil, praticamente ressurgiu das cinzas, por exemplo, com o lançamento do T5 em 2016. E as vendas da empresa cresceram ainda mais em 2017, com o T40.
E os lançamentos não param, no Brasil e no exterior. Na versão deste ano do ainda bastante concorrido Salão de Detroit, realizada agora em janeiro naquela cidade americana, o segmento de SUVs – também um dos mais aquecidos nos Estados Unidos – foi novamente o grande destaque, com cinco importantes novidades: o Kia Telluride, o Cadillac XT6, o GAC Entranze, o novo Ford Explorer e o Infiniti QX.
No entanto, para alguns especialistas, esta multiplicação de SUVs nos catálogos das montadoras também pode estar levando a uma inesperada diluição do conceito. De fato, a crescente “urbanização” dos SUVs já fez com que muitos utilitários esportivos, na prática, de off-road não tenham nada. Pior do que isso, a classificação está sendo cada vez mais usada para classificar diversos automóveis de passeio sem nenhuma capacidade off-road e já quase que sem nenhum traço de veículo utilitário.
“Como não há legislação definindo exatamente o que é SUV em nenhum lugar do mundo, tudo depende do nome comercial. Assim, os SUVs, que nos Estados Unidos inicialmente designavam modelos derivados de picapes, foram sendo adaptados e hoje são empregados até para hatches anabolizados”.
(Reinaldo Muratori, engenheiro da SAE-Brasil)
No Brasil, as montadoras usam a classificação criada pelo Inmetro para o Programa Brasileiro de Etiquetagem Veicular (PBVE) para declarar que seus carros são utilitários-esportivos, ou SUVs. Na prática, para o Inmetro, utilitário-esportivo não é um carro off-road, é um carro urbano. Pelos critérios do programa, a maioria dos carros altos, sejam eles hatches, sedãs ou peruas, entre outros, é classificada como SUV. Já as exigências do órgão para os fora de estrada são muito mais rigorosas, sendo que é obrigatório, por exemplo, o uso de pneus off-road.
Dois exemplos recentes de SUVs que são apenas carros urbanos vieram da Renault, com o hatch Kwid, e da Honda, com o monovolume WR-V. De acordo com o Inmetro, para ser utilitário-esportivo, um carro tem de cumprir quatro de cinco parâmetros. Tanto o Kwid quanto o WR-V estão adequados a essas normas e, portanto, no Brasil, podem ser chamados de SUVs. Só que não são.
“Em nenhum outro lugar do mundo um Kwid seria ‘o SUV dos compactos’, como diz o slogan do carro. Ele não é utilitário nem compacto. É subcompacto”.
(Fernando Calmon, engenheiro e jornalista especializado em automóveis)
Muitos inclusive acham que, se o termo utilitário for levado ao pé da letra, deveria ser atribuído apenas aos carros que têm real capacidade off-road. Há até quem defenda que o Inmetro deveria exigir o cumprimento de todos os parâmetros, não apenas de quatro. Pois a maioria dos modelos hoje listados como utilitários esportivos não conseguiria cumprir o ângulo de transposição, que é o que realmente define se um veículo é capaz de transpor obstáculos, algo fundamental para um autêntico off-road.
O problema não estaria só no Kwid e no WR-V. Modelos como HR-V, Creta e até mesmo algumas versões do Renegade não deveriam ter a classificação de utilitário de acordo com um critério mais rigoroso, já que nenhum tem real capacidade off-road.
“Os SUVs do Brasil não trazem nem mesmo tração 4×4”.
(Paulo Roberto Garbossa, diretor da ADK Consulting).
Mas esta classificação é confusa em todo o mundo. Se o termo veículo utilitário esporte (SUV), ou utilitário-esportivo, surgiu para designar os modelos com características de jipe, mas com itens de conforto de modelos de passeio, hoje assumiu a tendência de ser um carro qualquer, com uma pitadinha de SUV aqui e ali.
É evidente que mais cedo ou mais tarde os consumidores irão acabar insatisfeitos com essa história algo nebulosa. Daí, ter um SUV não será mais considerado um diferencial positivo – mas, sim, um sintoma de vulgaridade. Afinal, toda diluição de conceito paga o seu preço. E as montadoras estão pagando para ver. (texto:Alberto Mawakdiye/foto: reprodução)
Fonte: Ipesi