Metal Mecânica

Rivalidades históricas na indústria automobilística

O pai do dramaturgo e ator norte-americano Sam Shepard – que ficou conhecido no Brasil pela sua atuação no filme “Os eleitos” – não era de falar muito.

Morava sozinho no deserto, costumava empilhar garrafas de bourbon na geladeira e, disse Shepard, um dos poucos conselhos que ele lhe deu na vida, foi:

“Compre sempre General Motors”.

Sam Shepard não explicou a razão desta preferência.

De qualquer modo, para virar até um “conselho” de pai para filho, a frase revela com clareza o tamanho da radicalidade, nos Estados Unidos, que foi um dia a concorrência entre a GM e a Ford e, em grau bem menor, com a Chrysler.

De fato, entre os consumidores americanos, em certos períodos, a rivalidade entre a Ford e a GM parecia-se com as ferozes discussões dos torcedores brasileiros sobre qual seria o melhor time de futebol.

Difícil afirmar quem começou a briga, mas não há dúvida que as primeiras provocações vieram da GM, então em segundo lugar no mercado e que só se tornaria maior do que a Ford no transcorrer da segunda metade do século 20.

Mas Henry Ford, um misto de empreendedor visionário e pastor canastrão, deu também uma bela contribuição, devido à maneira heterodoxa com que ele conduzia os seus negócios. Ford, por exemplo, inflamou os nervos de todo o empresariado americano quando decidiu, sem consultar ninguém, aumentar os salários dos seus trabalhadores de modo que eles pudessem comprar o modelo Ford T (o “Ford Bigode”) fabricado pela montadora.

Era um salário muito maior do que os comumente pagos pela indústria. Os empresários da área automotiva, e de todas as outras, tiveram, por medo de greves, de acompanhar o que classificaram como uma espécie de “lambança” de Ford. Ele também queria “mandar’ no mercado automotivo. Além de impor os padrões salariais utilizados na Ford, ainda definia os preços médios dos carros, algo possível por causa do alto volume de produção de sua empresa.

Até a cor preferencial dos veículos foi consequência de sua principal inovação, a linha de montagem. Para gastar o menor tempo possível com a fabricação do modelo T, Ford determinou que todos os carros seriam pretos, e o preto virou praticamente sinônimo de cor automotiva no mercado americano.

Fruto da fusão ou aquisição de várias montadoras de pequeno e médio porte – Chevrolet, Buick, Pontiac, Cadillac etc. -, a General Motors decidiu, no entanto, um belo dia, desafiar a gigante, lançando carros de outras cores. Foi um sucesso. E tamanho, que a Ford logo teve também de começar a colorir seus carros.

A guerra estava declarada. E ao longo das décadas, foram vários os modelos dos mesmos nichos postos nas ruas para defenderem uma e outra marca. Uma das batalhas mais marcantes, e que dura até hoje, aliás, é a do Ford Mustang contra o Chevrolet Camaro, na categoria muscle car. Outra, no exclusivo segmento de carros de luxo, antepôs o Lincoln da Ford versus o Cadillac da GM.

A briga chegou até no Brasil, onde nos anos 1970 digladiavam-se pela preferência dos consumidores de espírito mais arrojado – e de bolso mais fundo – o Chevrolet Opala SS e o Ford Maverick GT, imitações algo grosseiras dos muscle cars americanos,mas que alcançaram grande sucesso de vendas.

Aliás, a rivalidade entre os dois modelos era tanta que despertou os piores instintos dos consumidores das duas marcas. Eles costumavam promover furiosos “rachas” nas avenidas das grandes cidades brasileiras, algo totalmente proibido por lei, para provar qual carro era o melhor.

Outras rivalidades não tão radicais como Ford vs.GM existiram (e ainda existem) meio que em toda parte, é claro, envolvendo ora os fabricantes, ora modelos específicos de veículos, numa disputa que pode ser de alcance mundial, nacional ou regional.

Algumas, como Mercedes vs. Daimler, na Alemanha da virada do século 20, não resistiram ao tempo – até porque as duas empresas acabaram se fundindo. Mas a Mercedes-Benz depois encontraria outro adversário de peso, a BMW. A Mercedes (cuja imagem é mais conservadora) e a BMW (que tem um ar ligeiramente mais esportivo) não dão o mínimo espaço de manobra para a rival atuar sozinha em nenhum segmento – nem mesmo nas corridas de automóveis.

Assim, só pra citar alguns exemplos, a Mercedes tem o Classe C e a BMW a Série 3; o Mercedes Classe A encontrou pela frente a BMW Série 1; o Mercedes Classe E, a BMW Série 5; o Mercedes Classe S, a BMW Série 7; e assim por diante. Na França, a briga entre a Peugeot e a Renault também é de modelo contra modelo. Na Inglaterra, os luxuosos Rolls-Royce têm de se haver com os igualmente luxuosos Bentley. Claro que aí, nas torcidas de ambos os lados, só tem milionários.

Já a rica indústria automotiva japonesa apresenta não apenas uma, mas três rivalidades célebres. A maior é a da Toyota contra a Nissan, as duas principais marcas de carro do Japão, que disputam espaço no país e também globalmente.

Para o mercado americano, a Toyota, por exemplo, criou a marca Lexus, enquanto a Nissan fez o Infiniti. Mas a Toyota sempre foi obrigada a lutar em duas frentes, já que mantém outra rivalidade de peso com a Honda, que criou o Acura para os Estados Unidos e lançou no Brasil o Honda Civic para disputar o mercado de sedãs com o Toyota Corolla.

O terceiro “clássico automotivo” japonês envolve a Subaru contra a Mitsubishi, fabricantes que brigam em pistas de rali e no mercado propriamente dito, onde hoje os seus principais representantes são o Subaru Impreza WRC e o Mitsubishi Lancer Evolution – ambos os modelos são vendidos no Brasil.

Mas talvez a rivalidade mais acirrada de todas – por envolver durante décadas os próprios donos das marcas – seja a da Ferrari contra a Lamborghini, duas célebres fabricantes italianas de carros esportivos de alto padrão, e cujos donos não podiam se ver pela frente sem (por assim dizer) chamar para um duelo. O curioso é que o ódio entre eles nasceu a partir de um episódio que poderia ser classificado perfeitamente como banal.

Dono de uma importante fabricante de tratores e apaixonado pelos bólidos de Enzo Ferrari, o já então lendário fundador da marca do “cavalinho rompante”, Ferrucio Lamborghini achava, no entanto, que as Ferraris que possuía (pois ele tinha várias) sofriam de um problema na embreagem – um problema de projeto, não exatamente mecânico. Seria uma embreagem algo frágil, que cedia quando a Ferrari era utilizada de forma a explorar todo o seu potencial.

Mesmo após diversas reparações, o problema persistia. Ferruccio concluiu que eram necessárias unidades mais robustas no sistema. Decidiu ele mesmo produzi-las… e acabou adaptando as embreagens de seus tratores nas Ferraris. Funcionou. O desempenho da “embreagem de trator” revelou-se impecável.

Ferruccio fez questão de mostrar o seu trabalho para Enzo Ferrari. Foi aí que o caldo entornou. O “Comendador” era o tipo do sujeito que detestava ser criticado – e muito menos que as suas máquinas o fossem. Simplesmente fechou a cara quando Ferruccio recomendou usar na Ferrari a tal da embraiagem mais robusta.

Pelo que contaram as testemunhas do encontro, a discussão entre os dois foi no melhor estilo dos italianos quando eles resolvem não ser muito educados.

“Você pode saber conduzir trator, mas certamente não tem a menor condição de dirigir uma Ferrari!”, teria gritado o exaltado Don Enzo. Que ainda por cima acrescentou: “Se quiser um carro melhor que o meu, que fabrique um!”.

E foi justamente o que Ferruccio Lamborghini fez. Furioso, ressentido, decidiu, mesmo enfrentando a oposição quase histérica da família e dos outros diretores da fábrica de tratores, fabricar um esportivo capaz de concorrer com a Ferrari. Nascia assim, em 1963, o Lamborghini 350 GTV, ainda como protótipo, ancorado na firma Automobili Lamborghini – a atrevida marca do touro.

Quanto ao imbróglio Farruccio vs. Enzo, eles continuaram a rixa pelo resto da vida. Nunca mais voltaram a se falar. E adoravam xingar um ao outro pelas costas, enquanto pensavam maneiras de vencer a concorrência entre as marcas. (Alberto Mawakdiye)

 

 

 

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